Saúde: Por que reverter a privatização?
Falsa
qualidade: no ano passado, foram registradas 75.916 reclamações contra
planos de saúde, sendo 75,7% relacionadas a negação de cobertura.
Influenciadas por preconceitos e estímulos governamentais, parcelas
crescentes da população aderem à medicina privada. Esta tendência é uma
bomba-relógio
Por Lilian Terra
Nos
últimos dez anos, o número de brasileiros que paga regularmente planos
particulares de Saúde cresceu de 34,5 para 47,8 milhões. Este movimento
tem sido apoiado por políticas governamentais. O Estado isenta a
medicina privada de impostos, permite que seus usuários deduzam do
Imposto de Renda parte das mensalidades que pagam e permite que os
planos não cubram os
procedimentos médicos mais caros e complexos de que precisam seus
clientes, que acabam sendo custeados pelo SUS.
A
migração é estimulada, também, por preconceitos. Parte da população
está convencida de que a rede de Saúde privada oferece atendimento de
melhor qualidade – em termos de acesso, qualidade e conforto. Estimulado
pela imprensa, este senso comum é enganoso. Para compreender por quê,
vale analisar com algum detalhe as diferenças entre os dois sistemas.
Uma
das grandes vantagens de um sistema público de Saúde é o fato de ele
ser responsável também pela Vigilância Sanitária. Isso fica muito claro
quando analisamos um fato simples, mas com o qual ninguém se preocupa,
ao fazer um seguro de saúde. O SUS tem obrigação de acompanhar, por meio
de estatísticas, a evolução da assistência à saúde dos brasileiros e os
impactos sobre os índices de adoecimento e mortalidade. Se o
atendimento é ruim e medidas
corretivas não são adotadas, isso se refletirá em números, aparecerá
para a população, provocará pressões sociais em favor de mudanças.
A
Vigilância que está sob responsabilidade do SUS é exercida de forma
capilarizada e hierárquica. Cada serviço de Saúde, desde a pequena
unidade básica da periferia até o hospital universitário, deve prestar
contas de seus atendimentos e fazer auditorias internas, com a própria
equipe de atendimento, para avaliar se tudo que é possível e necessário
está sendo feito para prover um serviço de qualidade. Os dados são
coletados pelo município e pela União. Os sistemas de atenção mais
complexa, geralmente a cargo dos estados, devem fazer o mesmo.
A
transmissão das informações nem sempre ocorre na prática de forma
efetiva, mas o Ministério da Saúde tem aumentado a cobrança dos
relatórios, como pré-requisito para o repasse financeiro. Organismos
internacionais, como
Organização Mundial de Saúde (OMS) e ONGs, por sua vez, estão sempre
atentos a índices de qualidade dos serviços de saúde, tais como
mortalidade infantil, mortalidade materna e mortes por causas evitáveis.
Além de repercutirem internamente, estes dados são vistos como
importantes para a própria imagem internacional do país.
A
população também cobra melhores serviços de Saúde, mas de maneira
difusa e até pouco produtiva, exatamente por não conhecer os melhores
canais para fazê-lo. São medidas eficazes participar dos Conselhos
Municipais de Saúde – que geralmente têm reuniões mensais – cobrar
diretamente o coordenador da unidade onde se é atendido ou fazer
reclamações e sugestões à ouvidoria da Secretaria de Saúde do município.
Outra
vantagem do sistema público de Saúde é trabalhar como um só corpo: toda
a rede é responsável pelo atendimento a cada paciente. Isso implica
criação de novos métodos,
em geral ausentes na rede privada – entre eles, grupos de educação em
Saúde. Nestes os pacientes recebem informações acerca de sua doença, do
tratamento, das medidas não medicamentosas que devem seguir e do
autocuidado, além de compartilhar experiências sobre problemas de saúde.
No
SUS, existem também os atendimentos multiprofissionais, raros fora da
rede pública. Neles, profissionais de diversas áreas examinam, com
diferentes olhares, um indivíduo e sua patologia. As discussões entre
eles refinam o tratamento, corrigem possíveis erros individuais e
melhoram a abordagem do doente.
Já como
uma forma de vigilância interna, em alguns locais os pacientes são
convocados a comparecer à unidade quando a equipe de Saúde percebe
descontinuidade no seguimento ou descompensação do quadro de saúde.
Faltam equipes e estrutura para que esse processo ocorra em todo o país,
mas o fato de funcionar em locais onde a Estratégia de
Saúde da Família está implantada e ativa demonstra que o atendimento
integral é possível e benéfico, quando há investimento adequado.
Rede privada
Já
a rede privada de Saúde, como qualquer sistema empresarial, é voltada
ao lucro. Não há vigilância epidemiológica, e mesmo algumas doenças de
notificação compulsória ao Ministério da Saúde deixam de ser
comunicadas. As consultas quase sempre são rápidas e envolvem um único
profissional. Informações sobre patologia e autocuidado devem ser
pesquisadas pelo paciente ou discutidas na sala de espera. O atendimento
não é otimizado por equipes médicas: é responsabilidade exclusiva do
médico atendente, de quem depende sua qualidade. Como não há cobrança
institucional, deve-se "ficar na torcida" para que este profissional
mantenha-se atualizado.
O preço da
consulta varia muito, e o senso comum acredita que os melhores médicos
não atendem pacientes com plano de
saúde, mas somente os que pagam do próprio bolso. E caro, pois o tempo
médico tem o valor de sua cara e dedicada formação. Planos de saúde mais
acessíveis (mas caros ainda assim) não podem pagar por esses médicos. O
sistema fica ainda mais prejudicado pela qualidade dos profissionais.
Essa
é a razão pela qual, em sistemas privados, as pessoas se queixam muito
comumente da rapidez da consulta, desatenção do profissional,
dificuldade de seguimento e ausência de informações sobre a doença.
Pagam caro para ter acesso ao sistema, sem saber que os médicos que os
atendem não recebem por aquela consulta sequer um oitavo do valor da
mensalidade do plano. Médico e paciente estão insatisfeitos.
A
grande vantagem do sistema privado sobre o público é o acesso à
medicina complementar. Exames laboratoriais ou de imagem são agendados
sempre com maior facilidade. Os procedimentos são mais rápidos. As filas
de espera,
infinitamente menores. Mas isso se dá porque a quantidade de pessoas
atendidas na rede privada é muito menor, por ser menor o número de
indivíduos que podem pagar por saúde. Mas mesmo essa celeridade vem se
reduzindo, na medida em que mais famílias têm acesso a convênios.
O
fato de ainda ficarem a cargo do SUS procedimentos mais caros, como
tratamentos oncológicos e transplantes, não cobertos pelos planos de
saúde, também contribui para a realidade do sistema privado de hoje.
Isso ficou muito claro na pesquisa suplementar de saúde incluída na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, IBGE) de 1998. Dois
terços das internações hospitalares do ano anterior haviam ocorrido pelo
SUS, ainda que 6,3% destes pacientes tenham declarado possuir plano de
saúde. Esse dado não voltou a ser pesquisado na PNAD de 2008, embora
tenha havido, desde então, aumento expressivo do número de brasileiros
cobertos pela medicina
privada.
Estima-se que cerca de 25,9%
da população esteja hoje nestas condições. Segundo a Organização Mundial
da Saúde (OMS, 2011), isso faz com que 56% do custo da saúde recaia
sobre as famílias e engorde os lucros dos convênios. O gasto público
recuou para apenas 44% do total. Pior: dele, cerca de 30% vão para os
planos de saúde, mais uma vez privilegiados em detrimento do SUS. Na
Inglaterra e Suécia, que também têm sistemas de Saúde públicos e
universais, o percentual das despesas custeadas pelo Estado é,
respectivamente, de 84% e 81%.
Ainda
assim, não se ouve muita reclamação a respeito. A transição para um
sistema privado de Saúde é vista como um ganho tanto pelo governo quanto
pela população. Pelas autoridades, porque permitirá reduzir ainda mais o
percentual do PIB gasto com Saúde. Pela população, porque esta acredita
que ter plano de saúde significa melhorar de vida. Essa transição
parece
próxima e tem despertado interesse de investidores internacionais, como
demonstra a recente compra da operadora Amil pela americana United
Health.
Contudo, a lógica do lucro não
se aplica à Saúde. No ano passado, segundo a Agência Nacional de Saúde
(ANS), foram registradas 75.916 reclamações contra planos de saúde,
sendo 75,7% delas relacionadas a negação de cobertura. Além disso, para
cortar custos, muitas operadoras impedem que o médico decida sobre
procedimentos mais caros, limitando a qualidade da atenção; reduzem o
valor por consulta repassado ao médico; não cobrem retornos; e invalidam
procedimentos sem justificativa aparente, deixando o profissional em
prejuízo.
Fica claro, portanto, que a
eventual opção pela Saúde privada será prejudicial à população, mesmo
àqueles que já são usuários deste sistema. A escolha definitiva pela
saúde pública precisa ser feita, com financiamento governamental de no
mínimo 10% do PIB, de modo que possamos alcançar o nível de
desenvolvimento e qualidade de vida que almejamos.
Saúde: Por que reverter a privatização?
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