Revista VEJA

Aids

Os 30 anos do combate à aids no Brasil: vitórias da ciência emperram na tragédia da saúde pública

Apesar da contribuição brasileira para o desenvolvimento do combate à doença, pacientes ainda sofrem com a falta de médicos e demora no atendimento

Pâmela Oliveira, do Rio de Janeiro
Fita vermelha, símbolo do combate à aids
Fita vermelha, símbolo do combate à aids (Thinkstock)

Ministério da Saúde estima que 630.000 brasileiros têm HIV ou já desenvolveram aids, e 255.000 sequer sabem que têm o vírus
Três meses. Foi esse o tempo de vida entre os primeiros sintomas e a morte do primeiro paciente com aids no Brasil, um morador de São Paulo de 34 anos. O óbito data de março de 1981, mas a família demorou um ano para saber que aquela era a primeira vítima do vírus no país. A sigla da insuficiência imunológica adquirida começava a assombrar o mundo e tomava o lugar do câncer como o mal mais temido e letal à espreita da humanidade. O trigésimo aniversário do histórico diagnóstico do HIV lembra o início de uma luta contra o tempo, para salvar vidas. Atualmente, o Ministério da Saúde estima que 630.000 brasileiros têm o HIV ou já desenvolveram aids, e 255.000 sequer sabem que têm o vírus. Neste sábado, um evento do ministério em Salvador vai celebrar o Dia Mundial de Combate à Aids.

Há três décadas, pouco se podia fazer. Vulnerável a infecções, o paciente sucumbia logo nas primeiras doenças que se aproveitavam da fragilidade no sistema imunológico. O resultado era a morte em poucos meses. Desde então, o Brasil alcançou vitórias importantes, tornando-se inclusive referência em distribuição universal dos medicamentos que podem retardar o avanço da doença e garantir qualidade de vida aos pacientes. Em 2007 — último dado disponível — a sobrevida dos pacientes de aids atingiu nove anos, mas há registros de brasileiros que manifestaram a doença e administram os sintomas do HIV há mais de 20 anos. Pesquisadores brasileiros têm participado de descobertas decisivas, como o uso eficaz do antirretroviral como método de redução de transmissão do vírus.

Os avanços da ciência tropeçam, no entanto, naquele que é o maior desafio do Brasil de hoje: as políticas públicas de saúde, incapazes de levar à população de forma eficiente o resultado do trabalho intenso de médicos e pesquisadores dedicados a entender e vencer o vírus. Como se imagina em um país de dimensões continentais, há diferenças regionais marcantes, mas, de forma geral, todos os estados têm falhado na missão de prover a assistência. Todos os dias, 32 pessoas morrem em decorrência da aids no Brasil. No Rio de Janeiro, segundo estado em mortalidade de pacientes soropositivos, são nove mortes a cada dois dias. A primeira consulta após o diagnóstico do HIV pode levar até seis meses, como em São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio.

A lentidão não é o único obstáculo. A condição financeira influencia muito na qualidade de vida de um paciente com o vírus HIV. Uma consulta com um infectologista na rede particular leva em média uma hora. Na rede pública, o mesmo procedimento é feito em 15 minutos. É o jeito que os médicos encontraram para conseguir atender à quantidade de infectados e pacientes que buscam ajuda na rede pública no Rio. No PAM 13 de Maio, por exemplo, são cerca de 2.100 pacientes para cinco infectologistas — uma relação de 420 pacientes para cada médico. O número de pacientes por médicos, no entanto, é maior porque uma infectologista está de licença maternidade e não foi substituída.

A descoberta da aids

“A rede pública oferece o básico do básico. Mesmo assim ainda há falta de medicamentos contra doenças oportunistas, como pneumonia e infecções que, devido à baixa imunidade causada pelo HIV, afetam os que têm o vírus com mais facilidade do que as outras pessoas. Hoje, o soropositivo atendido na rede pública sofre dos mesmos males enfrentados por qualquer outro paciente. O agravante, no entanto, é que a falta do médico ou medicamento pode acelerar ou até mesmo causar a morte”, afirma o psicanalista George Gouvea, coordenador do Grupo Pela Vidda Rio. “Um paciente soropositivo que precisa do SUS espera muito mais tempo para fazer um exame de carga viral, por exemplo, do que outro que não depende da rede pública. Já se sabe que o uso continuado de medicamentos contra o vírus aumenta o risco de problemas cardíacos. No entanto, os soropositivos têm séria grande dificuldade para conseguir consultas com cardiologistas na rede pública. O acesso a nutricionistas, psicólogos e urologistas também é muito complicado. O mais grave ainda é conseguir uma internação na rede pública”, afirma.

Em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio com 1 milhão de habitantes, 107 soropositivos esperam há seis meses por atendimento na fila do Posto de Assistência Médica (PAM) de Neves, única unidade que atende portadores do HIV na cidade. Como o problema não foi resolvido pelo gestor municipal, o estado encontrou uma solução precária: abriu um centro de atendimento no Hospital Estadual São Francisco de Assis, na Tijuca, no Rio, para atendê-los. O percurso de 24 quilômetros entre São Gonçalo e o bairro da zona norte do Rio, pode levar mais de duas horas dependendo do trânsito.

“A situação é caótica em São Gonçalo e Niterói. Dos 107 pacientes que estavam na lista, apenas 30 foram localizados para iniciar o tratamento. O restante está perdido, procurando atendimento em outras cidades ou desistiu de buscar ajuda. Isso é péssimo não só para o paciente, mas para o controle da epidemia. Quando um paciente é acompanhado e usa antirretroviral, a tendência é que a carga viral fique indetectável. Ou seja, que a quantidade de vírus HIV no organismo dele seja mínima. Ou seja, com menos vírus, o risco de transmissão é muito menor. Mas se o paciente não é tratado, a carga viral aumenta e o risco de transmissão também cresce”, diz a advogada Patrícia Rios, representante do Grupo Pela Vidda em Niterói.

No mesmo bairro em que funciona a nova unidade estadual, o PAM Hélio Pellegrino, na Praça da Bandeira, foi referência no tratamento a pacientes com HIV até março desde ano. A saída do último infectologista da unidade obrigou o fechamento do setor dedicado à aids. A falta de médicos deixou 600 portadores da doença abandonados, obrigados a disputar atendimentos em outros postos por conta própria.

“Tenho tentado uma consulta em outra unidade, mas não estou conseguindo. Já fui três vezes ao Hospital Rafael de Paulo Souza (no bairro de Jacarepaguá), mas não estão marcando novos pacientes porque o setor de Aids está superlotado. Minha última consulta aqui foi em março. Desde então só venho pegar meus medicamentos. É angustiante ficar procurando ”, contou um auxiliar de serviços gerais, de 51 anos.
As dificuldades da rede pública transformaram o ator Cazu Barros, que já foi um símbolo da luta da saúde pública do Brasil contra o vírus, em exemplo do descaso com esses brasileiros. Cazu foi garoto propaganda do Departamento Nacional de HIV/Aids. Aos 40 anos, ele convive com o vírus há 22. “Quando tive o diagnóstico de Aids, na década de 90, o médico me disse que eu só teria mais 6 meses de vida. A ciência evoluiu muito nessas duas décadas. Mas os que dependem do SUS não têm acesso a todas as conquistas. Tentei marcar uma consulta em setembro, mas minha médica só tinha horário para novembro”, conta.


Aos 36 anos, Mara Moreira vive há 18 com o vírus HIV. Ela faz parte de um grupo de pacientes em processo de “falência terapêutica”. Ou seja, pessoas com aids que hoje têm poucas opções de tratamento porque o vírus já não responde a maioria dos remédios. O drama vivido por Mara é agravado pelo fornecimento irregular do último e único remédio capaz de frear o HIV.

“Estou no meu último esquema. O único remédio que ainda funciona, no meu caso, é o Maraviroc. Ou seja, eu não posso ficar sem ele para não dar chance do meu organismo criar resistência porque se isso ocorrer eu não tenho mais opção. Mesmo com um liminar da Justiça que me garante o fornecimento do remédio, eu já fiquei dias sem a medicação. A resposta para a falta de remédios é sempre ‘problema de logística’. Eu estou cansada de tanto descaso”, afirma Mara.


No Rio, as dificuldades não se limitam ao atendimento ambulatorial. Pacientes mais graves, que precisam de cuidados hospitalares, enfrentam uma peregrinação por socorro. Com cerca de 35.000 pacientes em tratamento contra a doença e outros 7.000 em acompanhamento, o estado tem apenas 150 leitos de internação exclusivos para soropositivos, admite Alexandre Chieppe, superintendente de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde.

“É um problema hoje. O paciente com aids é um doente complexo, que usa número grande de medicamentos e precisa de equipe específica para atender essas pessoas. A expectativa é que até o primeiro semestre do ano que vem a gente tenha mais 50 leitos”, diz.


O diagnóstico tardio agrava o que por si só já seria um problema. Segundo Chieppe, um número “significativo de pessoas se interna no primeiro diagnostico”. O estado não tem, no entanto, o percentual de diagnóstico tardio nas emergências. “Temos um grande numero de pessoas que têm o diagnostico quando já estão doentes, com quadro avançado. Talvez o nosso principal desafio seja ampliar o diagnostico nos municípios e incentivar as pessoas a se testarem”, diz.

O secretário municipal de Saúde do Rio, Hans Dohmann, afirma que não há falta de infectologistas na rede. Segundo ele, há problemas no agendamento de consultas em algumas unidades de saúde.

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