Novos desafios para o programa contra a Aids
Efeitos colaterais e burocracia são barreiras ao atual tratamento dos doentes no país. Cartilha recomenda uso de cabelos compridos para disfarçar acúmulo de gordura
RIO - Josimar Pereira atende o telefone com luvas. Sua mão está ressecada, com feridas nas dobras. Aos 50 anos de idade, há 18 diagnosticado com o vírus da Aids, ele desconfia que possa estar desenvolvendo alergia a um dos remédios que usa. Sentada ao lado dele, Mara Moreira, 36 anos, metade da vida com Aids — infectou-se na primeira relação, com o então marido — mostra os acúmulos de gordura em seu corpo, problema conhecido como lipodistrofia e mais uma das consequências da medicação anti-HIV. Indignada, ela mostra um livreto informativo sobre a disfunção, distribuído pelo Ministério da Saúde durante o 9º Congresso Brasileiro de Prevenção das DST e Aids, realizado em São Paulo na última semana de agosto. Na cartilha, recomenda-se às vítimas de lipodistrofia usar cabelos compridos e roupas largas, para esconder os sintomas.
— O SUS oferece cirurgias de lipoaspiração, mas conseguir um horário num hospital é a nossa aflição. O incômodo maior não é estético, mas imaginar o mal que essa gordura toda está fazendo ao meu organismo — diz Mara.
Reprodução assistida
Ela chega para a entrevista, na sede carioca da ONG Pela Vida, no Centro do Rio, com um caderno onde estão listados os vários assuntos que tem para falar. E, sem querer, acaba fazendo um mapa das atuais aflições do programa anti-HIV/Aids no Brasil (ou de parte delas). A doença, que teve os primeiros registros no país no início da década de 1980, ingressa no século XXI impondo novos desafios ao programa oficial, considerado referência. Entre as questões a serem enfrentadas estão os efeitos colaterais graves trazidos pelos coquetéis (que aumentaram a sobrevida mas desencadearam reações não previstas), a tendência de aumento da incidência da doença entre jovens e gays, a diminuição no uso de preservativos, as aposentadorias para os soropositivos e a reprodução assistida entre os sorodiscordantes (casais em que apenas um dos cônjuges tem HIV).
Mara mantém uma relação sorodiscordante — seu namorado não tem HIV — e o casal quer ter um filho. Não existe orientação oficial a respeito, embora haja o risco de transmissão do vírus para os filhos. O namorado de Mara tem alergia a látex, e ela, por sua vez, tem dificuldade para encontrar camisinha feminina — feita de poliuretano — nos postos de saúde. Passou os últimos dois anos lutando na Justiça para obter auxílio do INSS por invalidez: o laudo do SUS considerando-a inapta para o trabalho foi rejeitado pelo instituto. E o pior: hoje, em estado de falência terapêutica — quando a medicação deixa de fazer efeito —, ela precisou de um mandado de segurança para adquirir o único remédio que talvez possa ajudá-la, pois o produto ainda não passou por todos os trâmites de liberação do Ministério da Saúde.
— O Brasil tem um programa anti-HIV/Aids que durante 20 anos realizou avanços essenciais, principalmente em relação à pesquisa científica e à oferta de medicamentos. Mas os desafios agora são outros — diz Denise Herdy, professora de Ciências Médicas da Uerj e coordenadora do grupo terapêutico Com Vida, do Hospital Universitário Pedro Ernesto.
Ao enumerar quais seriam as atuais barreiras ao programa no Brasil, Denise demonstra que Mara está em uma parcela imprecisa, porém significativa, das cerca de 210 mil pessoas em tratamento contra o HIV/Aids no SUS atualmente.
— O Brasil tem um programa anti-HIV/Aids que, durante 20 anos, realizou avanços essenciais, mas agora os desafios são outros. A questão previdenciária precisa ser revista; o conceito atual de “estou doente, não posso trabalhar”, precisa ser substituído por “como posso trabalhar estando doente?” Há também a questão legal da reprodução assistida entre sorodiscordantes: o governo deve intervir nisso, seja para estimular ou para evitar? E, ainda, uma prática médica de intersetorialidade que precisa ser disseminada, e isso é tão mais importante quanto mais se descobrem novos efeitos colaterais das medicações — diz Denise Herdy, professora de Ciências Médicas da Uerj e coordenadora do grupo terapêutico Com Vida, do Hospital Universitário Pedro Ernesto.
A origem do problema
Renato da Matta, 48 anos, doente há 12, também não consegue se aposentar. O laudo do posto municipal onde ele se trata, no Engenho de Dentro, detalhando o estágio atual da doença e os danos colaterais dos medicamentos, não foi suficiente para o INSS, que o considerou apto para o trabalho. Está vivendo com o que sobra da aposentadoria da mãe.
— A origem do problema é que os peritos veem a Aids como um mal crônico e cujos desdobramentos são conhecidos. Mas a Aids é uma imunodeficiência adquirida e degenerativa e cujos efeitos ainda estão sendo descobertos. Eu tenho uma resistência óssea de uma pessoa de 60, 70 anos, tenho danos nos meus sistemas nervoso e linfático, mas sou considerado apto pelos peritos do INSS. Eles olham apenas para a contagem do CD4 (células do sistema imunológico) e para a carga viral (quando o primeiro indicador está alto e o segundo baixo, significa que o tratamento anti-HIV está surtindo efeito) — conta Renato.
Em nota, a diretora de Saúde do Trabalhador do INSS, Verusa Guedes, nega que o instituto leve em conta somente a contagem de CD4 e a carga viral. “A condição clínica do segurado é considerada de forma completa”, afirma. “Não são analisadas apenas as doenças, mas a incapacidade laboral”.
Ativista e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Renato esteve em Washington no início de agosto para a 19ª Conferencia Internacional da Aids. Lá, presenciou o discurso do diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites virais do Ministério da Saúde brasileiro, Dirceu Greco. Um pequeno trecho de sua fala — ao ser perguntando o que lhe tirava o sono no combate à Aids, respondeu que “dormia tranquilo” — motivou o lançamento, no final daquele mês, de um manifesto, chamado “O que nos tira o sono”, reunindo cerca de 50 especialistas e integrantes de ONGs com críticas ao atual cenário da Aids no Brasil. A queixa central é que, para manter o reconhecimento internacional do programa, o governo brasileiro não tem reagido ou sequer interpretado corretamente dados preocupantes levantados pelo próprio Ministério da Saúde, disponíveis no último Boletim Epidemiológico da Aids, de julho de 2011.
— O boletim mostra um aumento da prevalência do HIV entre jovens alistados; um aumento nas notificações de Aids entre homens homossexuais; e, pela primeira vez desde o início da epidemia, uma redução no uso do preservativo. Numa perspectiva de saúde pública, esses indicadores deveriam ser suficientes para acender uma luz vermelha e levar o estado a reorientar sua política — analisa Alexandre Grangeiro, pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da USP e um dos autores do manifesto.
Em maio, o relatório “A Saúde no Brasil em 2030: diretrizes para a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro”, elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz a pedido da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, já acusava uma suposta estagnação do programa nacional anti-HIV/Aids. Em capítulo dedicado ao tema, o documento diz: “Parece que o ímpeto inicial que caracterizou o programa em suas primeiras décadas arrefeceu. O nível de incidência de Aids estabilizou-se, em um patamar muito elevado: mais de 30 mil casos anuais na última década. A proporção de casos com diagnóstico tardio é elevada. A rede de serviços especializados não está aumentando, e com a maior sobrevida dos pacientes, encontra-se sobrecarregada. Ao contrário do que se tem observado em outros países que também instituíram programas de acesso universal ao tratamento e têm observado queda na incidência de novas infecções, o Brasil não tem conseguido diminuir a incidência do HIV/Aids. Faz-se necessária a correção de rumos do programa, para que seja reduzida a transmissão da doença”.
Responsável pelo capítulo, o professor da USP e ex-diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde Expedito Luna comenta:
— O que esperávamos, com um programa que oferece o tratamento gratuito e universal, seria a redução do número de casos e da incidência. No meu entendimento, a estabilização da incidência (em 0,6% da população em geral desde 2004) é, em certa medida, um indicador do sucesso do programa, porém, evidentemente, se esta estabilização ocorresse em um nível mais baixo, seria menos preocupante.
Cazú Barroz, 39 anos, doente há 22, é a cara — literalmente — dos avanços e desafios do combate à Aids no Brasil. Garoto-propaganda de várias campanhas de conscientização do Ministério da Saúde, com atuações inclusive no exterior, ele não consegue encontrar o medicamento de que precisa num posto municipal de Copacabana onde se trata. Na verdade, não consegue sequer marcar a consulta em que será feito o pedido de exame cujo resultado recomendará a continuidade, ou não, do remédio que vinha tomando.
— O médico só tem horário para novembro — diz Cazú.
Insegurança e carência
Cleverson Fleming, 22 anos, descobriu a doença em 2008, quando precisou passar por exames num concurso para sargento, dentro do quartel onde servia. Foi eliminado. Atualmente, recebe uma bolsa de pesquisa em Ciências Sociais da UFRJ, universidade que lhe oferece também o tratamento anti-HIV, pelo Hospital Escola São Francisco de Assis. Além da insegurança no acesso aos medicamentos, queixa-se da carência de especialidades no atendimento:
— Eu estou precisando de um dentista, por exemplo. E acompanhamento psicológico. A menos que a gente esteja com depressão mesmo, o psicólogo não vem até você, não o procura. As ONGs estão sobrecarregadas, porque o olhar humano sobre a doença não é o foco do governo, que acha que as pessoas só fazem sexo no carnaval. Um amigo meu foi aconselhado pela própria atendente de um CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) a terminar um namoro sorodiscordante. Nunca tive muitos problemas para conseguir meus remédios, mas acho que essa história de “um dos melhores programas anti-Aids do mundo” está impedindo a gente de querer melhorar.
Secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa rebate as críticas. O secretário diz que o manifesto “O que nos tira o sono” não traz qualquer proposta para a melhoria do programa e defende a estabilização das taxas como indicador de sucesso.
— Críticas fazem parte do processo de políticas públicas, mas é preciso ter algo a acrescentar. Qualquer pessoa que trabalha com saúde sabe que o importante são as taxas, porque a população de um modo geral cresce. A de incidência da doença tem, sim, um leve aumento, mas não no Sudeste, onde está a maioria dos casos — aponta Jarbas Barbalho.
Reconhecendo dificuldades no combate à Aids no país, o secretário enumera, por outro lado, as ações que a pasta tem tomado para enfrentar um novo perfil da epidemia, baixa na população em geral e alta em grupos específicos.
— Do ponto de vista do Ministério da Saúde, os grandes desafios da epidemia no Brasil, hoje, são semelhantes aos de países desenvolvidos, que é a detecção precoce e como alcançar grupos muito restritos, que têm dificuldade de buscar tratamento na rede pública. Para atacar o primeiro problema, recentemente passamos a ser um dos primeiro países a ampliar a indicação do uso do antirretroviral, que poderá ser administrado a todas as pessoas com contagem de CD4 menor ou igual que 500 células/mm3 (anteriormente, o parâmetro para início do tratamento era menor ou igual a 350 células/mm3). Em relação ao segundo problema, temos uma prevalência do HIV entre jovens gays que chega a 10% e, entre travestis e profissionais do sexo, de 5%. Para isso, colocamos na rua um projeto piloto, que será expandido a todas as capitais, com unidades de saúde móveis, rodando à noite e indo até os pontos de concentração dessas populações, com testagem rápida.
Superintendente de Vigilância Epidemiológica e Ambiental no Estado do Rio, Alexandre Chieppe considera a situação da região “preocupante” — em 2010, o Rio teve uma taxa de incidência de Aids de 28,2 para cada cem mil habitantes, bem acima da média nacional, de 17,9 para cada cem mil —, mas também apresenta as medidas de combate à doença que tem tomado:
— O Rio tem números preocupantes, como um aumento da mortalidade desde 2007. No meu entendimento, a origem do problema não está na falta de remédios nem de preservativos, mas, principalmente, no subdiagnóstico ou diagnóstico tardio. Por isso, estamos promovendo a descentralização da testagem e eventos de troca de informações com as prefeituras menores. Neste momento, o grande objetivo é o impacto imediato na redução da mortalidade por Aids.
Reportagem publicada no vespertino para tablet O GLOBO A MAIS
http://oglobo.globo.com/ciencia/novos-desafios-para-programa-contra-aids-6079888__._,_.___
Anexo(s) de Francisco Adalton
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